Em fome pela Recoleta
À meia noite, Buenos Aires é um delírio
De pólvora e concreto esfarelado
Quando a fome entra ligeira, garganta a dentro,
E cada metro percorrido
faz da calle Corrientes, um pedaço esquecido do mundo
Na próxima esquina, a do esquecimento inóspito,
dos chicas se devoram em meio às sombras da madrugada
Juntas, pulsam ao ritmo elétrico da boate fluorescente
Hay vivir solo, cabron
?Si, pero ya lo soy, che?
Pigarreio as horas
?Lo que puedo hacer, sonreir?
Dois meninos cambaleiam até um velho automóvel
El chico uno lleva gafas
O outro, um cacho de bananas nanicas
Que me doem de desejo
Me acosté con hambre los últimos tres días
E os faróis e estações caminham pela calle Santa Fe
Tudo converge para o vendaval que preenche
as cadeiras vazias do Rincon Norteño
Me gustaria una hamburguesa completa
Mi humanidad pide que mi hambre se va
A fome é o desejo de esfarelar o cotovelo gasto,
o arranhar da barba pela vitrine fedorenta na dispersão da noite,
o rasgo no saco de lixo tóxico na esquina com a calle Riobamba
Como son felices, no? Padre, Madre y chicos
Assim como o meu salto desgraçado pelo sistema métrico
que cruza o Oceano Índico
e termina a dois passos do Sul
em meio a transa dos trópicos
No puedo ayudarte, joven
Todos sabem que é impossível medir o desejo
Ou os passos entre a lua
e o pé do estômago
Un viejo me llama y lo escucho
?Usted sabe que es posible predecir el futuro cuando los zapatos inundan la Recoleta?
?En serio? Si, compañero,
Mesmo quando o passo recuerda la lluvia y saudade,
indivisíveis e crônicas
Por cima do seu ombro,
pois já não há mais ombros lúcidos em Buenos Aires,
encaro, atônito, o breu que colore
o melancólico dezembro
? Qué pasa, che boludo?
Não há luzes de natal,
? Se volvió loco, hombre?
Como pode haver natal sem luzes coloridas?
Una chica sorri e sussurra entre dentes
Como se llama, brasileño?
Pero, não la escucho
Mis pensamientos são de las luces parpadeantes
Mis ojos ahora piscam sem cessar
Pues não adianta
nada mais adiantará
Ya que no hay hambre no porão
E Buenos Aires pode tentar
Mas jamais será o trópico leste do mundo
Para que você não se esqueça
Eu preciso lhe dizer
É importante que você não se esqueça
que tudo o que há lá fora
se dissolve com a velocidade
de uma trovoada em alto mar
Chove lá fora
E eu sou a trovoada que corrói
O vapor que escorre pelas janelas
do seu ônibus em plena segunda-feira
Eu sou a segunda-feira
e também o agente que desconstrói
o ozônio por cima de sua cabeça
Eu sou a molécula da nuvem que te persegue a caminho do trabalho
Derramando água e gelo para que você se lembre
que nada lhe faça esquecer
E também para que você se dê conta
do que está em vias de se acabar
Há um temporal
E pode ter certeza, que esse temporal sou eu
que arrasto os carros em direção aos córregos
e que levo ratazanas ao seu banheiro
porque eu sou as ratazanas
Não se esqueça
da minha voz ecoando pelos confins da noite
e da minha mente confusa
Dos meus dedos pálidos tocando sua pele macia
Porque eu também sou o arrepio
e a relva que acolhe os seus pés
enquanto todas as superfícies estão úmidas
Me esvaio na enxurrada que acompanha os passeios
para que possa ser a poça que molha o seu vestido
Eu sou cada uma das fibras de algodão que o compõe
Carregadas por meninos chineses em pleno natal
Talvez você não se surpreenda, mas eu também sou o natal
e o tédio que abraça enquanto o papai Noel não chega
Enquanto eu não chego
para que tudo se acabe num festim de carnaval
Como um conceito absoluto
uma regra imposta pelo espaço
Como o retinir da garoa enquanto a noite se expande e você repousa
e eu, imerso em brumas de sono
Sinto e sei,
Eu sou o teu pesadelo perfeito
Anderson Estevan é paulistano, poeta e jornalista. Autor de “Cores Primárias” (2013), pela editora Multifoco.
Poemas originalmente publicados en Cantera 9.
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